segunda-feira, novembro 08, 2010

Monteiro Lobato merece ser censurado?

A absurda tentativa de banir um livro infantil de Monteiro Lobato das escolas sob a acusação de racismo

 Como qualquer fábula, as de Monteiro Lobato (1882-1948) apresentam seres encantados, bichos falantes e situações inverossímeis. Foram escritas para despertar na criança o gosto pela leitura e fecundar a imaginação. Desde a década de 1920, as histórias do criador do Sítio do Picapau Amarelo têm sido adotadas nas escolas públicas de todo o país. Agora, o Conselho Nacional de Educação acolheu uma acusação de racismo contra uma dessas fábulas e pode bani-la das salas de aula por, de acordo com essa acusação, não “se coadunar com as políticas públicas para uma educação antirracista”. Ficar sem Monteiro Lobato é evidentemente ruim para as crianças – mas proibi-lo é pior ainda para o Brasil.

Quem levantou a questão foi Antonio Gomes da Costa Neto, servidor da Secretaria de Educação do Distrito Federal e mestrando na Universidade de Brasília (UnB) na área de relações internacionais. Ele fez uma denúncia à Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial afirmando que o livro Caçadas de Pedrinho tem passagens que incitam o preconceito contra os negros. O caso foi encaminhado ao Conselho Nacional de Educação (CNE), do Ministério da Educação. Uma das passagens citadas por Costa Neto é a descrição da cena em que Tia Nastácia, personagem negra, sobe numa árvore “que nem uma macaca de carvão”. Outra, quando a boneca Emília, ao advertir sobre a gravidade de uma guerra das onças contra os moradores do Sítio do Picapau Amarelo, diz: “Não vai escapar ninguém – nem Tia Nastácia, que tem carne preta” (leia os trechos abaixo).




Para o ministro da Secretaria de Igualdade Racial, Eloi Ferreira de Araújo, o conteúdo de Lobato deve ser considerado “racista” e “perverso”. Ainda que não leve uma criança a desenvolver comportamentos racistas, diz Araújo, ele fere a autoestima dos negros. “Para nós, que temos orgulho em ter a pele negra e o cabelo crespo, é duro ler que uma negra subiu (numa árvore) que nem uma macaca”, diz. Mesmo assim, Araújo afirma ser contra o veto à obra de Lobato. “Podemos negar 380 anos de escravidão? Não. Por isso, o debate é saudável”, diz. “Ao mesmo tempo que as crianças conhecem a obra, percebem que a sociedade caminha em passos expressivos, combatendo o racismo e a discriminação.”

A impossibilidade de negar a história é um dos motivos que fazem a professora Nelly Novaes Coelho considerar a ideia do veto à obra de Lobato uma “tolice”. Estudiosa de autores dedicados ao público infantojuvenil, ela diz que literatura tem como uma de suas funções explorar a realidade. “A história brasileira tem a escravidão por base. Isso levou a um preconceito muito fundo e não se pode passar a borracha nisso nem colocar dentro de um armário e fechá-lo.”

O Ministério da Educação anunciou que vai pedir ao CNE que reveja o parecer. Reduzir a obra de Monteiro Lobato ao que ela possa conter de racista – e, por isso, proibi-la – é incorrer em vários erros. O primeiro (e mais evidente) é supor que os jovens leitores são desprovidos de qualquer senso crítico e levarão ao pé da letra o que foi escrito, como se o efeito das palavras sobre seu caráter fosse definitivo. “Estão subestimando as crianças”, diz o psicanalista Mario Corso, autor de Fadas no divã. “Se ela se tornar mesmo racista, não será por causa da literatura, mas por causa dos pais ou do ambiente.”

Um segundo erro é rotular uma obra de arte e deixar escapar a complexa relação de seu autor com as ideias de seu tempo. Alguns dos maiores escritores do século XX, como o poeta americano Ezra Pound ou o romancista francês Louis-Ferdinand Céline, foram simpatizantes das ideias mais abjetas a respeito da superioridade racial europeia. Nem por isso suas obras deixam de ter um valor literário inestimável, seja ao inovar na forma, seja ao perscrutar a mente do homem moderno.


 Ao contrário do preconceito flagrante em Céline ou Pound, o racismo de Lobato é bastante discutível. Em várias ocasiões, ele valorizou a preciosa contribuição dos negros à cultura brasileira. O conto Negrinha é uma denúncia contra a elite que, nos anos 1920, ainda estava saudosa da escravidão. Sua obra mais polêmica, O presidente negro, um romance normalmente descrito como “eugenista” por descrever um mundo em que uma raça supera a outra, também oferece leituras alternativas. “Ele pode ser lido como uma grande metáfora das consequências da desculturação de um grupo étnico”, escreveu Marisa Lajolo, professora do Departamento de Teoria Literária da Unicamp. “Narra o desenlace do conflito racial nos Estados Unidos, que acaba tendo uma solução tão final quanto o foi a solução nazista para a questão judaica: a aniquilação dos negros, por meio de sua esterilização em massa.” Como revela a análise de Lajolo, as obras de arte não existem isoladamente. Cabe aos leitores interpretá-las de modo crítico e atribuir-lhes sentido.

Por isso, o maior erro da campanha contra o livro de Lobato é importar para a realidade brasileira a visão tosca e simplista dos defensores do “politicamente correto” nos Estados Unidos. Lá, o alvo predileto tem sido Mark Twain, pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, autor de obras-primas como Tom Sawyer e As aventuras de Huckleberry Finn. Este último é um retrato vívido – e nem sempre lisonjeiro – da cultura do sul dos Estados Unidos pré-Guerra Civil. Huck Finn, como é conhecido, foi escrito no começo dos anos 1880 e publicado em 1884. Narra as peripécias do garoto Huck, viajando pelo Rio Mississippi e pelos Estados do sul. A obra deu nova voz à literatura americana: o narrador personifica o espírito criativo, aventureiro, independente e humanista, mesmo diante da crueldade da escravidão. Pela primeira vez, o autor usou linguagem coloquial na literatura americana, com gírias e palavras específicas das comunidades ao longo do Mississippi.

Essa obra-prima alimenta uma controvérsia há duas décadas. Um grupo de acadêmicos e pedagogos acusa o livro de racismo. Para eles, o herói, Huck, humilha com frequência o escravo Jim, um personagem caricato, a quem Huck se refere usando a palavra “nigger” (um termo em inglês considerado uma forma racista e criminosa de se referir aos negros, intolerável para os ouvidos de qualquer americano contemporâneo). “Twain foi incapaz de pairar acima dos estereótipos de negros que os leitores brancos de sua era esperavam e apreciavam”, diz Stephen Railton, professor de literatura da Universidade de Virgínia. “Ele recorreu à comédia e ao chiste para fornecer humor à custa de Jim, o que confirmou, em vez de desafiar, o racismo típico do final do século XIX.”

Outros estudiosos da obra de Twain pensam o contrário: o livro oferece um olhar arrasador sobre as atitudes arraigadas da sociedade americana, particularmente sobre o racismo. É uma crítica às convenções sociais e à escravidão sob o manto de singelo livro infantil. “Huck Finn é um ataque contra o racismo justamente por humanizar o personagem de Jim, um escravo, e com isso expor as falácias dos racistas e da escravidão”, diz Shelley Fisher Fishkin, professora da Universidade Stanford e da Universidade do Texas. “O termo nigger nem sequer era usado de forma pejorativa na Inglaterra vitoriana e tampouco nos Estados Unidos até os anos 1940.” Os jovens estudantes, porém, ficaram fora do debate. Segundo a Associação de Bibliotecas Americanas, entre 1990 e 1999, Huck Finn foi o clássico que mais escolas pediram para retirar da bibliografia básica.


  No Brasil, Lobato é atacado desde a década de 1940, quando seus livros eram classificados como propaganda comunista. “Diziam que, com o sítio, ele queria criar o Estado Stalinista”, diz Ilan Brenman, pesquisador da obra de Monteiro Lobato. Segundo ele, Lobato foi acusado até de deformar o caráter das crianças. Condenado a seis meses de prisão durante a ditadura de Getúlio Vargas, Lobato foi perseguido pelo então procurador da Província de São Paulo, Clóvis Cruel de Morais, que pediu ao Estado que apreendesse todos os exemplares da obra Peter Pan. “Alegou-se que a texto incutia um sentimento de inferioridade nas crianças brasileiras porque falava bem da Inglaterra”, diz Brenman. Emília era vista como uma ameaça à família brasileira, por subverter a hierarquia numa sociedade patriarcal, em que um menor jamais podia contestar os adultos. A desaforada Emília era a imagem da rebeldia. “Se não tomarmos cuidado, Emília corre o risco de se tornar uma Barbie bem-comportada, de aparência impecável, ou, simplesmente, de ser calada para sempre”, diz Brenman.



  No parecer apresentado ao Conselho Nacional da Educação, pela Secretaria da Educação do Distrito Federal, como justificativa para o veto a Caçadas de Pedrinho, a professora Nilma Lino Gomes, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que a obra faz “menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano, que se repete em vários trechos”. Nilma diz que não teve como objetivo vetar a obra de Monteiro Lobato. “Reconhecemos a importância de um clássico e da obra em questão. Não queremos impor nenhum tipo de patrulha, mas precisamos ser coerentes com os avanços da nossa legislação no tocante às relações raciais e à educação”, afirma.

Para Marcia Camargos, coautora da biografia ilustrada Monteiro Lobato – Furacão na Botocúndia, o livro Caçadas de Pedrinho serve justamente como oportunidade para as crianças terem acesso a esse debate. “Entender aquele contexto social é uma forma de evitar erros no presente e no futuro”, diz ela. “Monteiro Lobato acreditava que a criança é um ser autônomo, com capacidade de discernir, e procurava estimular o senso crítico.”

De acordo com Mauro Palermo, diretor da Globo Livros, a editora que publica a obra de Lobato, ele sempre instigou a reflexão em seus textos. “Isso vale tanto para sua obra infantil quanto para a adulta”, diz Palermo. “Em vez de proibir qualquer uma de suas obras, parece-me melhor estimular uma leitura crítica por parte das crianças, aproveitando a oportunidade para mostrar como nascem e se constroem preconceitos. Se queremos contribuir para a formação de cidadãos críticos, não devemos fugir de questões polêmicas. Devemos enfrentá-las.” Num de seus aforismos mais citados, Lobato afirma que “um país se faz com homens e livros”. Durante toda a vida, escreveu livros para formar homens. Certamente, não se reconheceria em um país que pretende formar seus futuros cidadãos vetando o acesso a livros.




Fonte: Revista Época (link oficial)

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